Em uma abordagem surpreendente para combater o vício em jogos eletrônicos, uma organização chinesa de esports está utilizando métodos intensivos de treinamento profissional para mostrar aos jovens a realidade por trás da carreira de jogador profissional. A iniciativa, que custa cerca de US$ 1.400, coloca adolescentes através de rotinas exaustivas que simulam a vida real de um atleta digital.
A realidade por trás do glamour dos esports
Su Chenha, proprietário da organização, inicialmente fundou a empresa em 2018 com o objetivo tradicional de recrutar e treinar jogadores para competições profissionais. No entanto, em 2023, ele percebeu que poderia usar sua expertise para um propósito diferente após constatar como é raro alguém realmente alcançar o status de profissional.
As estatísticas são bastante reveladoras: apenas 0,1% dos jogadores conseguem se tornar profissionais, e mesmo entre esses, apenas a elite absoluta consegue ganhar seis dígitos em premiações. Muitos jovens sonham com a vida aparentemente luxuosa dos streamers e pro players que acompanham online, mas a realidade é bem diferente.
O programa intensivo que revela a verdade
O programa de 'desintoxicação' de games oferece cursos de uma semana com 22 horas de treinamento intensivo. O curso mais curto custa 10.000 yuans (aproximadamente US$ 1.400), enquanto o programa de uma semana pode chegar a 'vários milhares de yuans', variando de acordo com a intensidade do vício e instruções específicas dos pais.
O método é simples, porém radical: os participantes são submetidos à exaustiva rotina de um jogador profissional verdadeiro. Isso significa praticar o jogo todos os dias das 9h às 24h, com pausas apenas para refeições e uma corrida ocasional. Chenha relata que no primeiro dia uma criança já começou a ter cãibras musculares de tanto jogar, enquanto outra tentou voltar para casa no segundo dia devido à rotina rigorosa.
O perfil do vício em games na China
Embora estatísticas mostrem que a pessoa média com vício em games tenha entre 18 e 34 anos, este programa é especificamente voltado para crianças e adolescentes. A China tem uma relação complexa com os jogos eletrônicos - o país implementou algumas das políticas mais restritivas do mundo, incluindo limites de tempo de jogo para menores de idade.
Curiosamente, essa abordagem de 'tratamento de choque' levanta questões interessantes. Será que mostrar a realidade crua por trás do sonho profissional é a melhor maneira de combater o vício? Ou será que isso poderia, paradoxalmente, despertar ainda mais interesse em alguns jovens?
Na minha experiência acompanhando o cenário de esports, percebo que muitos realmente não entendem o nível de dedicação necessário. Não se trata apenas de talento natural - é disciplina, repetição exaustiva e sacrifícios pessoais significativos. O que me surpreende é como alguns pais estão dispostos a pagar valores consideráveis por esse tipo de intervenção.
Os bastidores do programa: rotina e realidade
O que exatamente acontece durante essas 22 horas semanais de imersão? A rotina é projetada para remover qualquer romantismo sobre a vida de jogador profissional. Os participantes acordam cedo e começam a treinar imediatamente após o café da manhã. Não há tempo para distrações - apenas repetição constante de movimentos, estratégias e análise de desempenho.
Chenha descreve como os instrutores são rigorosos: 'Eles não permitem pausas para redes sociais ou conversas paralelas. Cada minuto é dedicado ao aprimoramento técnico.' Os jovens são constantemente avaliados e recebem feedback brutalmente honesto sobre suas habilidades. Muitos chegam achando que são excepcionais, mas descobrem que estão muito abaixo do nível competitivo.
O aspecto psicológico é igualmente importante. Os participantes aprendem sobre a pressão competitiva, a ansiedade de desempenho e a solidão que muitos profissionais enfrentam. Eles assistem a vídeos de jogadores famosos discutindo seus próprios desafios mentais - algo que raramente aparece nas transmissões glamourizadas.
Reações dos participantes: do entusiasmo à exaustão
Os relatos das primeiras turmas mostram um padrão interessante. No primeiro dia, a empolgação é palpável - finalmente, poder jogar o dia todo sem restrições! Mas essa euforia rapidamente se transforma em cansaço físico e mental. As cãibras musculares não são incomuns, especialmente nas mãos e pulsos.
Um participante de 15 anos compartilhou sua experiência: 'No terceiro dia, eu já não aguentava mais olhar para a tela. Minhas costas doíam, meus olhos ardiam e eu só queria dormir.' Outro admitiu que começou a odiar o jogo que antes amava: 'A magia desapareceu quando virou obrigação.'
Curiosamente, alguns poucos participantes descobrem que realmente têm vocação e talento. Para esses, o programa serve como um teste de resistência e paixão genuína. Mas são exceções - a grande maioria reconsidera completamente sua relação com os games.
O debate ético: tratamento ou castigo?
Especialistas em dependência tecnológica têm opiniões divididas sobre essa abordagem. Dra. Li Wen, psicóloga especializada em vícios digitais, expressa preocupação: 'Substituir uma relação problemática com jogos por uma experiência traumática pode criar outros problemas. Precisamos questionar se a exaustão é a melhor professora.'
Por outro lado, alguns argumentam que a honestidade brutal é necessária. 'Os jovens precisam entender que esports não é diversão - é trabalho duro,' defende um treinador profissional que preferiu não se identificar. 'Se uma semana intensiva os faz repensar suas escolhas, talvez seja menos prejudicial que anos de ilusão.'
O que me intriga é como os próprios pais justificam o investimento. Muitos relatam ter tentado terapias convencionais sem sucesso. Um pai confessou: 'Gastamos mais em psicólogos no último ano do que neste programa. Se funcione, vale cada yuan.'
O contexto regulatório chinês e seus paradoxos
Vale lembrar que a China implementou em 2021 algumas das restrições mais severas do mundo para jogos online. Menores de 18 anos podem jogar apenas três horas por semana - das 20h às 21h de sexta, sábado e domingo. Todas as contas são vinculadas a identidades reais através do sistema de verificação governamental.
Essas medidas extremas criaram um mercado paralelo interessante. Alguns jovens contornam as restrições usando contas de adultos ou VPNs. Outros migram para jogos single-player não afetados pelas limitações. O programa de Chenha surge neste contexto como uma solução privada para um problema que as políticas governamentais não conseguiram resolver completamente.
O paradoxo é fascinante: o mesmo país que restringe severamente o acesso aos games também abriga a maior indústria de esports do mundo. Clubes chineses são potências globais em jogos como League of Legends e Dota 2, com jogadores celebrados como heróis nacionais. Como conciliar essa contradição?
Alguns analistas sugerem que programas como o de Chenha representam uma terceira via entre a proibição total e a permissividade. Em vez de simplesmente bloquear o acesso, eles mostram o que existe do outro lado do sonho - tanto a glória quanto o sacrifício.
O sucesso comercial da iniciativa é outro aspecto notável. Chenha relata que a demanda é tão alta que precisou expandir sua equipe de instrutores. Eles agora oferecem programas personalizados baseados na gravidade do vício e no jogo específico. Honor of Kings e PUBG Mobile são os mais solicitados, refletindo as preferências dos jovens chineses.
Mas será que essa solução capitalista para um problema de saúde mental é ethical? Os críticos questionam se não estamos medicalizando excessivamente o uso de tecnologia. Afinal, onde traçamos a linha entre paixão saudável e vício patológico? E quem define esses parâmetros - pais, profissionais médicos ou o mercado?
Com informações do: Dexerto